Cuidados

Foto: Rynnard Alves Dias

Os quatro países do MERCOSUL mostram uma preocupação crescente com o tráfico de pessoas, bem como com o desenvolvimento e implementação de propostas para combatê-lo e erradicá-lo.

O dinamismo e a intensidade da mobilidade nas zonas de fronteira e, em particular, nas cidades gêmeas, é bastante elevado, razão pela qual a travessia quotidiana das fronteiras internacionais é corriqueira. Embora na grande maioria dos casos a mobilidade esteja ligada a compras, uso de serviços de saúde e educação na cidade-espelho ou seu entorno (Oeyen, 2016), os fluxos migratórios regionais também são registrados. Ocasionalmente, os deslocamentos relacionados à migração internacional podem estar associados a situações que violam os direitos dessas populações. Os migrantes em situação de vulnerabilidade tornam-se as principais vítimas do tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual e laboral, entre outros riscos que enfrentam.

 

Nos últimos 15 anos, o aumento da visibilidade da questão do tráfico e da violência tem motivado a preocupação dos governos nos países do MERCOSUL. Existem várias tentativas de estabelecer redes entre entidades públicas e privadas e organizações internacionais para combater o tráfico de pessoas*. Apesar disso, a sistematização e análise de informações a esse respeito são escassas e pouco desagregadas. É difícil ter estatísticas precisas sobre a realidade dos adolescentes e jovens vítimas de tráfico para fins de exploração sexual ou laboral, uma vez que os registros são feitos principalmente a partir das denúncias registradas nas diversas instituições intervenientes. Estes não abrangem a totalidade do problema e apresentam a dificuldade adicional de uma falta de harmonização na forma de registro. De acordo com um relatório de 2019 sobre o Tráfico de Pessoas realizado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, os quatro países do MERCOSUL mostram uma preocupação crescente com o tema, bem como com o desenvolvimento e implementação de importantes propostas para combatê-lo e erradicá-lo**.

 

De acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), o número de vítimas detectadas e denunciadas vem aumentando, sendo mais pronunciado nas Américas, o que pode ser explicado não só pelo aumento da ocorrência do tráfico, mas por causa da a melhoria na capacidade de detecção, reporte e registro (UNODC, 2018). Uma das peculiaridades da América do Sul é que 93% das vítimas do tráfico foram detectadas na mesma região. Em termos do perfil das vítimas, a grande maioria das vítimas de tráfico detectadas (80%) são mulheres, jovens e crianças. Mulheres jovens e adultas constituem uma estreita maioria das vítimas detectadas (51%), enquanto as meninas representam uma proporção significativa (31%). A maioria das vítimas detectada foi traficada para fins de exploração sexual.

 

Em 2016, essas vítimas representavam cerca de 58% do total. As vítimas de trabalho forçado estão em segundo lugar, afetando todos os grupos de vítimas – mulheres, homens, meninas e meninos – em números muito semelhantes. A Argentina e o Paraguai relataram uma proporção particularmente grande de vítimas traficadas para esse fim (cerca de 50% em ambos os países). É importante mencionar que o grupo de pessoas LGBTIQ+ também está entre as vítimas de tráfico e exploração sexual, em maior medida, jovens e adultos transgênero (EUA, 2019).

Uma das particularidades da América do Sul é que 93% das vítimas de tráfico foram detectadas dentro da mesma região.

 

O comércio ilegal e outras atividades informais também são outra fonte de mortes violentas e atraem pela falsa ilusão de serem empregos fáceis e altamente lucrativos, pensamento compartilhado por adolescentes e jovens, que deixam os estudos sem muita expectativa e até empregos formais para realizar atividades ilegais. Rabossi (2013) explica que nos últimos 30 anos a fronteira trinacional formada entre Argentina, Brasil e Paraguai e outros núcleos de cidades gêmeas têm sido colocados entre as prioridades em termos de segurança nacional e regional. Segundo Nunes (2018), a cadeia do tráfico e contrabando baseia a sua estratégia em pequenas localidades fronteiriças, onde são recrutados principalmente jovens. Chamados de “mulas”, na linguagem policial, esses jovens engolem cápsulas de drogas ou carregam a mercadoria em mochilas a pé, percorrendo até 90km na selva.

 

Segundo o autor, a manutenção dos fluxos ilícitos e as disputas que isso acarreta entre as diversas organizações criminosas, tem aumentado a violência na região, impactando no número de mortes violentas, principalmente por armas de fogo. Segundo dados de um diagnóstico de homicídio realizado pelo Ministério da Justiça no Brasil em 2015, a taxa de homicídios na região Sul*** (14,36%) é menor em relação ao resto do Brasil (28,4%). O Paraná tem uma taxa de homicídios de 12,2 por 100.000 habitantes e o Rio Grande do Sul tem a maior taxa de homicídios da região, 19,9%. Em relação às mortes por armas de fogo, a situação é mais grave no Paraná (19,3%) do que no Rio Grande do Sul (17,6%), o que levaria a pensar que há maior circulação de armas no estado do Paraná.

 

Historicamente, a Argentina apresenta baixas taxas de homicídio, que não ultrapassam 7% por 100.000 habitantes. A taxa para o total do país é de 5,1%, que supera as taxas das duas províncias que acolhem as cidades gêmeas estudadas: Entre Ríos (Concordia), com uma taxa de 5%, e Misiones (Posadas), com uma taxa de 4,6% (Secretaria de Gestão da Segurança Federal, 2019).

 

Nesse ponto, é necessário pensar em políticas públicas focalizadas e específicas para aquelas cidades de fronteira, que são, em sua maioria, objeto de crimes transnacionais. Nesse sentido, articular esforços entre governos nacionais e subnacionais, especialmente com foco nos jovens, para evitar que caiam como vítimas dessas redes criminosas transnacionais, é absolutamente fundamental para um aproveitamento positivo do dividendo demográfico.

* Comissão Trinacional de Combate à Exploração Sexual Comercial promovida por um projeto da OIT que terminou em 2006. Atualmente, um novo projeto da OIM visa fortalecer a Comissão Trinacional de Combate à Exploração Sexual Comercial. Esta rede é formada por representantes dos três setores: privado, público e ONG.

 

** A Argentina concentrou seus esforços no aumento das investigações, processos e condenações, inclusive de autoridades cúmplices. Como resultado, o número de vítimas identificadas aumentou. Uma crítica é a falta de um orçamento específico para um plano de ação nacional abrangente que inclua assistência e acompanhamento às vítimas. Em 2018, o Brasil iniciou um novo ciclo de combate ao tráfico de pessoas (ETP) com a eleição de um novo grupo de representantes para o Comitê Nacional de Combate ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP) e a aprovação do 3º Plano Nacional de ETP e seu financiamento. Também tem concentrado seus esforços na investigação, condenação de traficantes, identificando mais vítimas de trabalho escravo. No caso do Paraguai, existe uma Promotoria Especial para o Tráfico de Pessoas e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. O país registrou crescimento no número de vítimas atendidas e na capacitação de mais funcionários que atuam no seu combate. O Uruguai aprovou normas abrangentes contra o tráfico de pessoas, desenvolveu um plano abrangente contra o tráfico de pessoas 2018-2020 e criou o Conselho Nacional para a Prevenção e Combate ao Tráfico e Exploração de Pessoas (CNTE) por meio da Lei nº 19.643, de julho de 2018, feita do Instituto Nacional da Mulher, Ministério do Interior, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Ministério da Economia e Finanças, Ministério da Defesa Nacional, Ministério do Trabalho e Segurança Social, Ministério da Saúde, do Instituto da Criança e do Adolescente do Uruguai, da Procuradoria Geral da República, do Poder Judiciário e de representantes de organizações da sociedade civil de reconhecida atuação na matéria.

 

*** As regiões do Brasil são agrupamentos de unidades federativas (estados ou distrito federal) em que a federação se divide a fim de auxiliar nas interpretações estatísticas, implantar sistemas de gestão de funções públicas de interesse comum ou orientar a aplicação de políticas públicas de os governos federal e estadual. Não há, portanto, nenhum tipo de autonomia política para as regiões. A região Sul é formada pelos estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

Oeyen, M. (2016). Mobilidade populacional em áreas de fronteira internacional: A configuração dos espaços de vida na fronteira Brasil-Paragua”. Tese de Doutorado em Demografia. Belo Horizonte, CEDEPLAR/ UFMG.

Rabossi, F. (2013). “Dinámicas económicas en la Triple Frontera (Brasil, Paraguay y Argentina)” en Carrión, F y Enriquez, F. (eds.). Dinámicas transfronterizas en América Latina: ¿de lo nacional a lo local? Quito, OLACCIF, FLACSO Sede Ecuador, Universidad Privada de Tacna, y Universidad de Tarapacá.

Secretaría de Gestión Federal de la Seguridad (2019). Informe Estadísticas Criminales en la República Argentina

– Año 2018. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Dirección del Sistema Nacional de Información Criminal.

UNODC (2018). Global Report onTrafficking in Persons. Viena.

USA (2019). Country Narratives. Washington D.C.: Departamento de Estado.